sábado, 24 de abril de 2010

O RELACIONAMENTO COM O MUNDO

O homem ao viver no mundo, pelo mundo deixa-se seduzir, permitindo que algo profundo ocorra em sua essencialidade: o afastamento de si. Por meio deste vínculo profundo estabelecido com o objeto presente neste mundo e por ele vivenciado, o homem abandona o sentido de sua existência, sendo conduzido apenas pelo desejo do vínculo estabelecido com o objeto presente na natureza ou por ele criado.

A partir deste relacionar-se com o objeto, cada vez mais presente nesta era contemporânea, o homem perde sua principal característica – de ser humano -, perdendo-se, veda-se ao entendimento e a partir desta perda, o mundo sensível por meio dos objetos se tornam o centro de sua existência.

Conforme ARENDT (1997 p.25-26):

Mas porque é que o mundo pode ser um deserto para o homem que procura? Como e por que o homem pode viver no questionamento que é a sua procura, sem nada exigir ao mundo? A constante relação estabelecida com um objecto pode ser suprimida pela presença perto do que é desejado. Esta presença é a quietude (quies), manter o que se deseja. A posse apenas supera verdadeiramente o isolamento e harmonia a beatitude.


Hannah aponta no texto acima um fator essencial do pensamento Agostiniano, que é o desejo. O Homem que deseja, e esse desejar, por não ser compreendido pelos sentidos, o conduz erroneamente a fixar-se apenas nas efemeridades existentes no mundo, levando-o a prender-se ao objeto, aprisionando, assim, seu verdadeiro desejo (conhecer) por meio do relacionamento estabelecido com eles.

Em nossa era contemporânea, especificamente com o advento do capitalismo, é possível pela forma explícita deste sistema que o ter (objeto) foi exaltado de tal maneira que o ser (sujeito) foi reduzido a ponto de ser descaracterizado tanto pelo sistema como por si mesmo.

Toda essa cultura da necessidade de possuir redireciona o desejo do homem que é o de se descobrir no mundo, ao desejo de consumir, de ter (possuir). Com isso, todos os seus ideais focados no universo do objeto, o retiram de si, de sua essencialidade, e o conduz a um sofrimento constante semelhante ao de uma criança que ao ir à praça com os pais se perde. Tem-se, assim, no momento e a partir da conscientização de que está perdida o medo e a força que a conduzem à infelicidade temporal.

Da mesma maneira, o homem ao ter apenas o objeto ou quando se sente dominado por este, tem a consciência de que a sua vida gira em torno daquilo ao qual está se relacionando, tornando-se escravo deste, e percebe-se que já não se faz mais o que o ser deseja, mas se acomoda ao objeto dominante.

Todo este aspecto de submeter o ser, ao ter, tem implicações profundas em sua alma, pois à medida em que não se é, o ser humano deixa de existir, e não existindo para si, o limiar do que se espera, do que se busca, tem a sua potencialidade encerrada ali.

Desta maneira Agostinho (1998, p.52) escreve:


Certamente não está nas coisas mortais, porque o que existe em outra coisa não pode permanecer se não permanece aquilo onde está. E há pouco concordamos que a verdade permanece mesmo quando perecem coisas verdadeiras. Por isso, a verdade não está nas coisas que perecem. Mas a verdade existe e não está em nenhum lugar. Portanto, existem coisas imortais. Mas nada há de verdadeiro onde não esteja a verdade. Conclui-se, pois, que não há coisas verdadeiras senão as que são imortais.


Assim, deter-se ao ter é aniquilar-se, pois tudo o que está sobre o tempo é passageiro, fugaz e tem o seu fim, mas redirecionar nossa busca para o caminho da alma é, antes de tudo, descobri-se, reconhecer-se, transcender e acima de tudo trilhar pela busca da verdade.

Todo esse desejo do conhecimento, só se torna possível quando se passa pela alma pois, por meio desta, há o encontro de si, e encontrando-se, encontra-se o que a alma deseja, uma vez que é impossível alguém ensinar o caminho de algo a alguém sem que nunca tenha conhecido o caminho, caso contrário, não se ensinaria, mas estar-se-ia perdido.

Esse é o termo correto, perder-se. Quando estamos fitos no objeto, no ter, nos sentimos perdidos, longes de nós mesmos, mas quando se faz o processo inverso, do desejo de conhecer que passa pela alma, aí então temos todo um itinerário a ser seguido, não mais estaremos seqüestrados pelas ciladas dos sentidos, uma vez que a alma estará em tranqüilidade e nos sentiremos fortalecidos.

Este sentir-se fortalecido, a partir do processo do descobrir-se, no garante forças incansáveis para superarmos o universo das superficialidades e de sistemas que nos foram introjetados. Teremos assim, não mais os objetos como senhores, mas seremos nós senhores da alma, alcançando assim a vida feliz.

ARENDT (1997, p.18), contribui neste sentido dizendo:

Do querer possuir e do querer manter o desejo nasce o medo da perda. No instante em que é possuído, o desejo transforma-se em medo. Assim como o desejo deseja o bem, o medo receia o mal. O mal, que afasta o medo, ameaça à vida feliz que consiste em possuir o bem. Enquanto o homem deseja as coisas temporais (res temporales), expõe-se continuamente a esta ameaça, e ao desejo de possuir correspondente incessantemente o medo de perder.


Ao homem, compete ir além do que se espera e, desejar o que a alma deseja é não se aprisionar no tempo, mas viver no tempo conduzido pela alma, a qual nos dará o entendimento capaz de existirmos e vivermos na sociedade de maneira feliz.

Este árduo caminho para a alma é possível por meio do relacionar-se, pois é no processo do conhecimento que há uma possibilidade pela busca da alma; é na experiência do cotidiano que temos a oportunidade de nos questionarmos a respeito do significado da vida feliz.

Sobre isso ARENDT (1997, p.24) escreve:

O homem mortal, que é posto no mundo – mundo presentemente enquanto coelum et terra – e que o deve deixar, faz do mundo, a ele se prendendo, um objecto condenado a desaparecer na morte. A identificação específica entre terrestre e mortal só é possível quando o mundo é considerado a partir do homem, aquele que vai morrer (moriturus).


A partir da conscientização e retorno ao verdadeiro desejo (a alma), o ser humano inicia um novo caminho que lhe fornece um grande desafio, o de ir além do objeto, enxergar-se por um viés que lhe permite viver no mundo e, ao mesmo tempo, não perder de vista a perspectiva da vida feliz.

Viver no mundo e nele não se aprisionar é o mesmo que buscar o equilíbrio sem se deixar conduzir pelos excessos e tampouco pela carência. O retorno à alma é o objetivo para se alcançar a vida feliz, porém este retorno só será possível quando o relacionamento não for aprisionado por alguma das partes.

A prisão da qual falamos é aquela que faz o sujeito se esquecer do que é e que o conduz a viver distante de si, preso somente nos relacionamentos efêmeros que não lhe adicionam benefícios, fazendo-o perder-se definitivamente no mundo e em si mesmo.

Agostinho percorreu todo esse cárcere que lhe fez esquecer seu verdadeiro e essencial desejo, o de ser feliz. Mas a vida sempre é marcada pelo limite humano e este não é o definitivo, ao contrário, indica a possibilidade da mutabilidade do ser.

Com efeito, mover os membros do corpo à vontade, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da alma e da inteligência.” (AGOSTINHO, 2007, p.161)


REFERÊNCIAS


AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007. 432 p.

AGOSTINHO, Santo. Solilóquios e A Vida Feliz. Tradução: Adaury Fiorotti, Nair de Assis Oliveira. 2. Ed. São Paulo: Paulus Editora, 1998. 157 p.

ARENDT, HANNAH. O conceito do amor em Santo Agostinho. Tradução: Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 189 p.

Um comentário:

Você pode expressar aqui sua opinião sobre o post. Logo em seguida, ele será enviado para aprovação. Agradeço a visita!