Vânia Dantas2
Nosso ser pessoa, além de contemplar aquilo que somos e fazemos,
implica também em nos colocar em relação com o mundo. Viver é
relacionar. É assim que vivemos, e nesta perspectiva ao longo do
existir vai corroborando nossa imagem que temos do mundo, das
pessoas, dos objetos que nos circundam.
No cotidiano temos várias imagens do mundo que nos são fornecidas
por meio das conversas, da abstração. Alguns representam o mundo
como lugar perdido, de pessoas sem uma direção, de um verdadeiro
caos no sentido humano. Outros esboçam imagens esperançosas, onde o
mundo é visto como belo, pessoas como solidárias, e a humanidade em
contínua modificação.
Tais símbolos que trazemos em nosso interior sobre o exterior são
meios também que influenciam diretamente nosso jeito de ser. Por
vezes, a impressão que temos daquilo que “é de fora”, acaba
sendo levado para nossa interioridade trazendo-nos uma verdadeira
“indigestão”, nos desestabilizando, provocando um “mal estar”.
Quando nos conscientizamos de tal realidade, é momento de
redirecionarmos o nosso posicionamento. Como diz um trecho da canção
(Por Enquanto, Renato Russo): “Mudaram as estações, nada mudou,
mas eu sei que alguma coisa aconteceu, ta tudo assim, tão
diferente...”. A vida nos proporciona novos motivos que nos fazem
esquecer realidades passadas e assim mudar o horizonte do nosso
poente.
Quais realidades que tem permeado seus dias? É chegado o momento de
se adequar a uma nova estação, assim como os ciclos do ano, nossa
vida também pede por transformações, abra-se a uma nova
realidade....
Há momentos em que a vida é submetida as regras de nosso tempo,
vida agitada, trânsito corrido, decisões a serem tomadas, questões
familiares a serem resolvidas. Parece que somos absorvidos pelo
stress de nossa hodiernidade. Certa vez Jung escreveu: “O
autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas
origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social,
eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje”3.
São tantas e tantas situações que parecemos ser absorvidos pela
exterioridade, é como se o mundo nos pegasse de nosso interior e nos
colocasse em outro lugar, um lugar no qual nós não nos sentimos
bem, pois não é a nossa casa, não é o lugar de nossa intimidade.
E a partir daí, começamos a sofrer as nossas inadequações, nos
vem o medo, a insegurança, a tristeza, até mesmo algumas
enfermidades provenientes deste entristecimento por não estarmos no
lugar que gostaríamos. Numa outra citação, Jung diz: “Como
vemos, ambas as teorias [a de Freud e a de Adler] de que falamos tem
em comum o fato de desvendarem impiedosamente o lado sombrio do
homem. São teorias, ou melhor, hipóteses que nos explicam em que
consiste o fator que provocou a doença. Logo, tratam não dos
valores de uma pessoa, mas dos seus contravalores, que sempre
perturbam ao se manifestarem”4.
Ou seja, muitas vezes não sabemos gerenciar os nossos contrários,
aquilo que nos propõe um “desprazer”.
O lado ruim existe! Não dá pra ficar apenas jogando-o abaixo do
tapete, indefinidamente. Logo estaríamos vivendo sobre contêineres
de lixo.
A vida automática por vezes nos faz esquecer de nós mesmos, dos
nossos sonhos, das nossas qualidades, afinal fomos sequestrados do
lugar onde mais gostamos de estar, e é nessa conscientização, no
perceber que estamos aprisionados, que precisamos “bolar” um
plano para sair daquilo que aos poucos vai nos matando.
Sempre é tempo de recomeçar, mesmo na dor. É preciso olhar para o
lugar que nos rememora esperança e aí encontrar forças para
rompermos os grilhões que nos aprisionam, nos recompormos, e então
iniciarmos o processo de retorno para casa. Viver é sempre um
processo de voltarmos ao lugar onde somos refeitos, onde somos
novamente gerados na esperança, nos sonhos, na alegria. Esqueceu que
lugar é esse? Vamos cria-lo na mente, vamos eleger o melhor para si
mesmo; precisamos de modelos de bem-viver, precisamos de ideias para
nos reinventar e mentalizar um paraíso mais digno, conforme nossa
evolução.
O mundo pode ser modificado à medida que eu me modifico, que eu
vejo o de fora de uma nova maneira, à medida que encontro forças
para dar a ele uma nova moldura, uma nova pintura. Pinte o universo
exterior com cores vivas, com cores que emergem de sua vida, viva de
maneira renovada.
Uma vida renovada é uma vida que foi encontrada, é entrar em
contato com o mais profundo de si, com o próprio Deus. Nesse
sentido, Hannah Arendt escreveu: “o bem ao qual o amor aspira é a
vida, e o mal que o medo afasta é a morte. A vida feliz é a vida
que não pode ser perdida”5.
Muitos relatam essa experiência do reencontrar-se consigo, com
Deus. E neste momento descobrimos que o mundo não está contra mim,
mas fui capaz de reconciliá-lo, porque antes me encontrei comigo
mesmo. É a experiência que fez Agostinho de Hipona: “Tu me
chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu
esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume: respirei-o,
e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti.
Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama”6.
Há uma reconfiguração em todo nosso ser pessoa, distribuído
entre “espiritualidade, emoção e corpo”, tudo se integra e nos
leva a uma harmonia. E passamos a ver a importância que existe no
mundo que chamamos irracional ou “inconsciente”, no sentido de
percebermos que não somos apenas racionais, também há outras
várias dimensões em nós. É como disse Jung: “acho mais sábio
reconhecer conscientemente a ideia de Deus; caso contrário, outra
coisa fica em seu lugar, em geral uma coisa sem importância ou uma
asneira qualquer - invenções de consciências 'esclarecidas'”7.
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1Graduado
em Informática – Universidade de Lins, graduado em Filosofia –
Centro Universitário Claretiano, graduado em Teologia – Faculdade
Dehoniana -, Pós-graduado em Filosofia Clínica – Instituto
Packter -, Pós-graduando em Psicologia/Sexualidade – Uniara.
2Mestre
em História Social – Universidade Federal de Uberlândia - UFU,
Especialista em Filosofia Clínica - Instituto Packter, Licenciada
em Filosofia – UFU. E-mail: vaniamor@hotmail.com.
3JUNG,
C.G. Psicologia do Inconsciente. Tradução: Maria Luiza
Appy. 3ªed. Vozes. Petrópolis, 1983, Prefácio do autor em relação
à 2ªed.
4C.G
JUNG, Psicologia do Inconsciente, 3ªed. Vozes, 1983, p. 39.
5ARENDT,
HANNAH. O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Lisboa: Editora
Piaget, 1997. p. 19
6
AGOSTINHO. Confissões. XXVII. Tradução: Alex Marins. São
Paulo: Martin Claret, 2007.
7C.G
JUNG, Psicologia do Inconsciente, 3ªed. Vozes, 1983, p. 63.