sábado, 24 de abril de 2010

FELICIDADE, DESEJO A PRIORI DA ALMA

Percorridos todos os caminhos propostos, chegamos ao objetivo de nosso trabalho e também a máxima de todo ser humano, a felicidade. Levando em consideração que para se chegar aqui o ser humano precisa contemplar as diversas fases da existência humana: o conhecer, o relacionar, a liberdade, o amor, o tempo e, enfim, chegar à realização da vida feliz que ocorre quando a alma, estando livre das prisões do mundo, é capaz de viver nele como lugar que a revela pelos objetos e pelas pessoas que participam deste relacionar-se.

Ser feliz não é uma utopia, mas uma realidade que pode ser vivenciada. Diante desta possibilidade ARENDT (1997, p. 67) nos acrescenta:

A vida feliz não é rememorada como puro passado, que enquanto tal não a nada obriga a vida factual; ao contrário, ela é, enquanto passado rememorado, uma possibilidade do futuro (tal como, nos momentos de tristeza, nos recordamos da alegria a partir da experiência que se teve como um possível que pode ser reencontrado em momentos actuais de tristeza).


Com o passar do tempo, a humanidade passou por grandes transformações, principalmente com o advento da tecnologia e das ciências.

De certa forma, todos estes avanços ocorridos ao longo da história, trouxeram, sim, muitas inovações, contribuíram de várias maneiras para o desenvolvimento do mundo, mas não podemos negar o fato de que nunca em toda a humanidade o ser humano se sentiu tão fortemente abalado como em nossa era contemporânea.

Segundo HABIGZANG, L.F. CADAVIZ, A.L. (2008), vemos:


A contemporaneidade nos suscita a pensar a força do tempo. O ritmo vertiginoso dos grandes centros urbanos, o processo de virtualização com os computadores e as redes digitais, a incessante oferta de imagens na mídia (atuando na produção dos desejos), são apenas algumas das mutações em curso que caracterizam a implosão do espaço-tempo. Até que ponto estamos acompanhando essa aceleração, nos adaptando, agilizando nosso pensamento? Quais são os sintomas que essa cultura produz em nossa subjetividade? (SESSÃO Nômade. Espaço Vida, Porto Alegre, abril 1997, n2). Verifica-se as marcas da carência, da angústia provocada pela desterritorialização, da melancolia. Já, no século passado, ao tentar compreender a depressão, Freud (1895) postulou uma relação entre perda objetal e a melancolia. Ele sugeriu que a raiva do paciente deprimido é dirigida para seu íntimo, em razão de identificação com o objeto perdido. (in: Birman, 1999).

A partir de toda essa descaracterização do ser humano em virtude das novas tecnologias, do desenvolvimento, é possível compreender claramente que a vida feliz só é possível quando o ser humano não está aprisionado, mas em sua liberdade de ser, utiliza-se da tecnologia para sua realização no mundo, como lugar da revelação para sua liberdade e felicidade.

Durante toda a sua vida, Santo Agostinho também vivenciou acontecimentos semelhantes ao do homem contemporâneo, mas em características próprias da época. Ele que durante muito tempo esteve aprisionado no mundo, vivendo para o mundo e não para si, sofreu o desespero e a angústia que o conduziram ao despertar para a alma, fazendo com que Agostinho conhecesse a si mesmo, compreendesse e se relacionasse com o mundo, alcançando por meio da liberdade, do tempo e do amor, a transcendência da alma, a vida feliz. Na citação a seguir, é possível compreender acontecimentos que permeiam para além do tempo e que estão presentes na condição humana, “[...] todo o plano, tão bem construído, se desvaneceu entre nossas mãos, fez-se em pedaços e teve de ser abandonado.” (AGOSTINHO, 2007, p.137).

Viver é relacionar-se e para se chegar à vida feliz é preciso permitir que a vida seja lapidada pelos acontecimentos, não se prendendo a eles, mas permitindo que nos ajudem no processo de revelação e compreensão do mundo. A vida vai se tornando bela, quando somos capazes de ver além, ver a essencialidade das coisas e não nos prendermos às superficialidades.

O próprio Agostinho (2007, p.232) nos ensina:

Encontrei muitos que gostam de enganar, mas ninguém que quisesse ser enganado. Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde conheceram a verdade? Visto que não querem ser enganados, também amam a verdade, e desde que amam a felicidade, que nada mais é que alegria, proveniente da verdade, certamente também amam a verdade; e não a amariam se não retivessem dela, na sua memória, alguma noção. Por que, então, não se alegram com ela? Por que não são felizes? Porque se empolgam demais com outras coisas, que as tornam mais infelizes do que a verdade, de que se recordam fracamente, e que os faria felizes.


Uma coisa é certa, neste desejo de conhecer, de buscar, temos a nossa realização quando descobrimos que encontramos a verdade; em outras palavras, quando não nos sentimos enganados, temos a certeza daquilo que procuramos.

A felicidade é justamente isso: retirar as máscaras das ilusões, das representações que foram criadas pelo falsos relacionamentos com os objetos e com as pessoas e nos revestirmos do que é verdadeiro, daquilo que não nos engana e que conduz nossa alma à felicidade.

Esta realidade é possível de ser contemplada por meio do entendimento. Apenas o ser humano possui essa faculdade de entender e, por meio desta, ter a clareza do que é verdadeiro e do que realmente pode conduzir à vida feliz, visto que os sentidos nos enganam, nos fazem viver uma ilusão, assim como os sonhos, mas o entendimento nos conduz à verdade sobre nós mesmos. Sobre isso SCHOPENHAUER (2007, p.18) nos diz:

A primeira manifestação do entendimento, aquele que se exerce sempre, é a intuição do mundo real; ora, este ato do pensamento consiste unicamente em conhecer o efeito pela causa: deste modo toda intuição é intelectual. Mas ela nunca chegaria a realizar-se sem o conhecimento imediato de algum efeito capaz de servir de ponto de partida.


Desta maneira, os efeitos, aquilo que é superficial, é apenas um condutor para a essencialidade, é como olharmos alguém que está chorando e por meio do choro sermos movidos a buscarmos realmente o que proporcionou o choro. E, a partir daí, encontrarmos a causa presente na alma. Por meio do entendimento seremos capazes de compreender.

A vida feliz ocorre justamente assim, no relacionar com mundo, não se prendendo ao efêmero, ao que nos engana e seduz. Na contemporaneidade, as luzes nos ofuscam: são tantas ofertas, tantos produtos, tantas facilidades, mas por meio desses efeitos tão sedutores, precisamos nos questionar a respeito de suas essencialidades. Talvez seja por isso que a arte e a estética nos fascinam tanto, pois se apresentam como são, enquanto as futilidades da vida, os encantos da modernidade, apresentam uma beleza superficial, mas que ao entrarmos em contato, descobrimos o vazio e a inutilidade.

Buscar a vida feliz é justamente se prender à essencialidade e não à futilidade, pois esta não acrescenta algo a mais em nossa existência, pelo contrário, retira o que ela possui de significativo, ao contrário da essencialidade que nos preenche, acrescenta à alma. E neste processo de retorno ao ser, esta decisão (passagem) é capaz de nos angustiar, mas de nos conduzir à essencialidade, segundo HEIDEGGER (1999 p.56-57):

Na angústia ― dizemos nós – “a gente sente-se estranho. O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isso, entretanto, não no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém ― na fuga do ente – este “nenhum”. A angústia manifesta o nada. “Estamos suspenso” na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios ― os homens que somos ― refugiarmo-nos no seio dos entes. É por isso que, em última análise, não sou “eu” ou não és “tu” que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se.


Assim, o percurso para a vida feliz é um caminho consciente, real e verdadeiro que não está alicerçado em efemeridades, mas em essencialidades, e que é algo possível de ser atingindo e conquistado, sendo necessário apenas uma coisa: o desejo verdadeiro de buscar a alma.


REFERÊNCIAS


AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007. 432 p.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tradução: M.F. Sá Correia. 1. Ed. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2007. 431 p.

ARENDT, HANNAH. O conceito do amor em Santo Agostinho. Tradução: Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 189 p.


HEIDEGGER, Martin.
Coleção - Os pensadores. Tradução: Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. 304 p.

HABIGZANG, Luísa Fernanda;CADAVIZ, Ana Letícia. A Cultura contemporânea e a produção do sintoma depressão. Disponível em: <http://www.geocities.com/instituinte/luisaculturadepressao.htm> Acesso em: 20 out. 2008.

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