terça-feira, 28 de junho de 2011

Metafísica: O escândalo da cruz anunciado por Paulo e o esquecimento do ser proposto por Martin Heidegger

Nos últimos séculos temos percebido o empenhar-se do homem hodierno pela ciência, e o esquecimento de tantas outras formas do saber que não são possíveis de serem demonstradas empiricamente (poesia, arte, música, fé), mas que carecem de contemplação. Assim, existem coisas que são próprias do ser, e que não podem ser tocadas pelo cientificismo, o homem é muito mais do que ele faz, o homem é um ser que é.

Hannah Arendt que foi aluna de Heidegger, nos leva a esta reflexão, o homem vive mais preocupado com o “agir” do que com o “pensar”. No que nos transformamos? Será que não estamos apenas reproduzindo um sistema? Como nossa vida é reduzida nos dias de hoje? Procuramos as melhores escolas, nos esforçamos para conseguir os melhores empregos, se preciso até prejudicando outras pessoas, fazemos e fazemos, mas em vista do que? Pelo dinheiro? Para conquistarmos bens materiais? De uma falsa felicidade? É, realmente parece que nossas ações convergem apenas para o material, o ser assim é definitivamente esquecido, deixado de lado.

Heidegger em seu pensamento, coloca a diferença entre ser e ente. O ser é aquilo que o homem é (essencialmente) falando, o ente é aquilo que ele demonstra em suas relações no mundo, com as coisas. O ser não pode ser tocado, e o ente só existe (age) porque o ser é (o alimenta, é a sua força). Quando vejo uma pessoa, interajo com ela, relaciono-me externamente com seu ente, mas o seu ser (suas dimensões mais profundas – abstratas -) eu não consigo experienciar onticamente, ao mesmo tempo que parece estar perto, é distante. Isso não quer dizer que o ser não é ou esteja fechado, apesar das pretensões científicas, utilizando de meios empíricos, a ciência não consegue tocá-lo. A poesia expressa uma das chaves de acesso ao real, Pascal tem razão ao dizer “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Falar de tal situação faz-nos refletir sobre algo que o apóstolo Paulo anunciava, cf. I Cor 1,18-25: “A pregação da cruz é loucura para os que se perdem, mas para os que são salvos, para nós, ela é força de Deus. Pois está escrito: “Destruirei a sabedoria dos sábios e confundirei a inteligência dos inteligentes”. Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o disputador desta era? Aliás, Deus não reduziu a loucura a sabedoria deste mundo? De fato, pela sabedoria de Deus, o mundo não foi capaz de reconhecer a Deus através da sabedoria, mas, pela loucura da pregação, Deus quis salvar os que creem. Pois tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria. Nós, porém, proclamamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens”1.

Nesse sentido, traçamos um ponto em comum entre Heidegger e Paulo, em que, para Heidegger, a ciência acredita ter acesso a tudo por meio de sua técnica e conhecimento, achando possuir a sabedoria por meio da epistemologia. Em Paulo, dentro de seu contexto, viviam “a gente do espírito”, que eram aqueles estudiosos, considerados os sábios, achavam-se eles os “dominadores da sabedoria”, mas não foram capazes de reconhecer o escândalo da cruz, na pessoa de Jesus Cristo. Pois, como poderia Jesus (um justo) ser morto numa cruz? Queriam crer apenas num salvador super-humano, enquanto Paulo insistia na ideia de um salvador crucificado. É interessante que “o louco” é visto de certa forma como alguém diferente, que saiu da “normalidade”, da lógica, do senso comum. Não seria assim, um encontro profundo com o ser? Um rompimento com o senso comum? Não seria este então o sábio?

É importante lembrar que a morte de Cristo foi consequência de sua auto-oblação, não vontade de Deus, mas da maldade dos homens que não acolheram a Palavra; Jesus entregou-se inteiramente ao projeto do Reino de Deus, que prezava o ser, a pessoa humana, a vida. Lutou pela dignidade humana, “com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” Lc 19,102. Jesus não olhava o efêmero, mas a essencialidade, o que a pessoa era em si (ser). Nas palavra de Heidegger “este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém ― na fuga do ente – este “nenhum”. A angústia manifesta o nada”.3

Não teria Jesus vivido isso? Afastado-se da totalidade dos entes (fenômenos efêmeros – poder, a busca pelo status quo e o egocentrismo - ?) e lutado por justiça, por partilha e pelo bem comum? E quando há o rompimento com o senso comum, o que nós sobra? A angústia. E a angústia nos leva a sair de toda essa situação, e nos insere num processo de nadificação, onde o vazio parece surgir, mas na realidade é a entrada ao mais profundo de nós mesmos (ser). Jesus assim, por escolher viver e fazer a vontade do Pai, buscando o real que não é somente empírico, sentiu angústia, conheceu o mais profundo da condição humana, foi capaz de compreender o coração daqueles que foram deixados à margem, “esvaziou-Se a Si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens” Fl 2,7a.

Portanto, em nossa atual conjuntura mundial, com seus pensamentos e maneiras de se viver, saibamos nos questionar se de fato estamos vivendo (ser), ou estamos sendo conduzidos (ente) por um sistema. A problemática é justamente esta, estarmos sendo conduzidos nos leva a sentirmo-nos num espaço e neste espaço efetuamos algumas tarefas letárgicas, insignificativas, agimo-nos como marionetes. Viver é justamente o contrário, é perceber-se que se está no tempo, e quando optamos em entrar em contato com nosso ser descobrimos a importância do que somos, e isso nos desperta ao altruísmo, nos faz perceber que somos parte de um todo (holismo), que as pessoas que nos cercam nos são significativas, e que o cosmos – a ecologia - também é responsabilidade nossa. Assim, o escândalo da cruz e a metafísica de Heidegger ao contrário do que muitos pensam ser apenas ideias inatingíveis, “loucura”, quando assumidas na vida humana são capazes de produzir vida, existência, caridade e fraternidade, nos fazendo compreender o sentido de ser e de existir (dasein) no mundo.


1Bíblia edição CNBB.

2Ibid. CNBB

3HEIDEGGER, Martin. Coleção -Os pensadores. Tradução: Ernildo Stein. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. p.56-57.